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Minha ex-tranha namorada (Por Carlos Henrique Fernandes Gomes)

Maria Eduarda me conheceu num barzinho sinistro da parte divertida da Rua Augusta. Ambiente escuro, quase sem ar, pelas paredes descia uma luz avermelhada, música eletrônica esquisita, depressiva, a batida desconcentrando a gente, um sussurro indefinido de fundo dando tonteira na cabeça.

De repente uma mão fria pegou na minha e me conduziu com leveza, até com doçura. Semi-despertei do transe da música e senti minhas costas encostarem à parede, um corpo colou-se ao meu. Corpo que meu tato definiu como de mulher e uma boca fria acariciou a pele sensível do meu pescoço...

Acordei tonto, pescoço dolorido, uma moleza desconfortável no corpo, náusea, calafrios. Estava deitado num banco da Praça da República e me lembrava mais ou menos do que aconteceu só até aquela boca tocar meu pescoço. Já era meio da madrugada e ao meu lado uma moça com visual gótico, que nunca vi antes, amparava minha cabeça em suas coxas. Na hora apalpei o bolso para ver se minha carteira ainda estava lá; sim estava, se com o dinheiro que sobrou não me lembro.

Moça bonita, não, mentira, linda. Bem branca, cabelos pretos, lisos e compridos, com a franja para a direita, olhos negros atrás de óculos de armação preta oblonga, combinando com o queixo fino, rosto sério, bochechas quase rosadas, boca pequena, bem vermelha, nariz arrebitado e voz macia. Ela me disse que na escuridão do barzinho tropeçou em alguém caído e resolveu ajudar. Pronto, foi assim que nos conhecemos.

Assim que a estação República do metrô abriu, ela me levou até em casa. Dentro da minha cabeça rodopiavam as imagens velozes e o barulho vertiginoso do metrô, as vozes pareciam de desenho aminado, eu sentia o chão macio e cheio de altos e baixos sob meus pés dormentes e suas mãos frias e firmes me seguravam quando eu ia cair. Não me lembro de ter feito baldeação na estação Sé, da linha vermelha para a azul, nem de ter andado da estação Santa Cruz até meu apartamento, mas acordei bem depois do meio-dia, todo dolorido, no sofá desconfortável da minha sala. Não sei por onde Maria Eduarda saiu porque a porta estava trancada pelo lado de dentro.

Acabamos nos encontrando por acaso nos dias seguintes, sempre de noite, na Avenida Paulista, no Centro Cultural, no Viaduto Santa Efigênia, depois em frente à Galeria do Rock e outra no Vale do Anhangabaú. Mundo pequeno esse, aí conversa vai, conversa vem, rolou um clima e começamos a namorar.

A convivência me fez notar algumas de suas estranhezas: Maria Eduarda não gosta da luz do sol, diz que lhe arde os olhos, tem as mãos e os pés frios, diz que é por causa da pressão baixa, mas as outras partes também são frias. Uma vez o síndico me interfonou dizendo que os vizinhos viram alguém entrar voando pela minha varanda, depois de rir muito da cara dele e dizer que minha namorada devia ter esquecido a chave, ao desligar o aparelho, dei de cara com ela, linda, toda de preto. Fiquei na dúvida se tinha feito uma cópia da chave para ela.

Maria Eduarda era uma universo fascinante. Qualquer assunto ela dominava e me falava de coisas que nunca ouvi antes: histórias do passado, do presente e do futuro. Eram narrativas com detalhes de quem viveu tudo aquilo e isso a deixava com uma aura quase sobrenatural. E eu sentia que a cada dia perdia o pouco controle que tinha sobre mim, a cada dia me apaixonava mais e mais por ela.

Tivemos nosso primeiro “mal entendido” quando eu quis me exibir: “Assombração não me faz medo, não tremo diante de fantasma, de gente que vira bicho, de morto que bebe sangue. Esses não têm conceito comigo!” Maria Eduarda, com a sobrancelha esquerda erguida, fazia um esforço de titã para se controlar, ficou até ofegante, linda, intimidadora. Fechou a cara, ajeitou os óculos, e respondeu meio que rosnando: “Você devia ter mais respeito com o que não conhece! Que moral você tem pra falar disso? Já viu alguma assombração antes?” Caí na besteira de perguntar se ela tinha medo de assombração e ouvi: “A assombração sou eu, meu amigo!” Senti um medo que nunca havia sentido antes: medo de perder aquela mulher incrível! Passei o resto da noite tentando consertar a merda que fiz, sentindo-me um filho da puta plus por magoar de um jeito tão imbecil o coração da mulher que amava, e ela, com a sobrancelha esquerda erguida, sem me olhar, respondia com grunhidos monossilábicos.

Senti que Maria Eduarda era a mulher da minha vida na primeira noite que fizemos amor. Meu deus! Por que não a encontrei antes, quer dizer, por que ela não tropeçou em mim antes?

Deliciosa!

Dominadora, assustadora, do jeito que eu gosto!

Maria Eduarda por cima, com seu corpo frio e gostoso, debruçada sobre o meu corpo trêmulo, segurando meus braços com força desproporcional, a boca grudada ao meu pescoço o tempo todo, às vezes tirava, estalava a língua e gemia “gossstoso”.

Eu me debatia debaixo dela, sentia que ia perder as forças! Como se Maria Eduarda apertasse meu pescoço, faltou o ar e meu tesão aumentou demais. Queria que ela apertasse mais forte, eu queria me libertar, eu queria ficar, eu me debatia debaixo dela, sua boca fria no meu pescoço dolorido, seus gemidos, seus grunhidos de fera, minha visão ficando embaçada, as forças se acabando, seu corpo gostoso e frio se mexendo sobre o meu corpo quase frio, uma névoa fria nos envolvendo, calafrios, o pescoço ardendo.

E lá se foi a última reserva de forças num não sei quê revirando no meu baixo ventre, numa revoada de assas selvagens, num riff de guitarra, calor-frio-tremor na cavalgada de um corcel negro, de zero a cem por hora em dois segundos!

Meu deus! Que mulher!

Acordei com dor de cabeça, tontura, o corpo dolorido e o pescoço duro. A visão desembaçando aos poucos me permitiu ver Maria Eduarda sentada no chão, ao lado da cama, olhando para mim:

— Oi, doçura! — ouvi, como se viesse lá de longe, a voz meiga da minha estranha namorada de bochechas rosadas.

— Oi, amor... — gemi. Não tive forças para sair da cama.

Maria Eduarda não ria, nem sorria; havia serenidade no seu rosto, tanto quando estava pálida quanto corada. Às vezes achava que ela ia sorrir, mas era só a curvatura natural que o rosto assumia quando falava alguma palavra começada com “a”. Aquele olhar por detrás dos óculos me fazia perder a razão das coisas que eu gostava de fazer e eu me rendia ao que ela desejasse, aonde ela me conduzisse. Qual um rato em direção à mandíbula da cobra eu não tinha forças para dizer não e essa sensação de impotência me excitava.

Um dia vi uma coisa que me deixou intrigado, ou deixei de ver, não sei bem. Por causa do banho quente que tomei, o banheiro ficou cheio de vapor, quase difícil de respirar, e o espelho embaçou. Passei a mão para desembaçar e enquanto olhava o reflexo da minha cara de cadáver, fiquei tonto, meus joelhos se dobraram e senti as mãos frias da Maria Eduarda me agarrando por trás, impedindo que eu caísse no chão. Antes de desmaiar procurei seu lindo rosto no espelho, mas só encontrei o meu rosto de doente.

Havia alguns dias que eu estava bem mais fraco do que já vinha me sentindo. Não conseguia mais trabalhar, me concentrar, quase um delírio. Maria Eduarda não saía da minha cabeça, fazendo com que eu desse pouco significado a tudo mais que me rodeava. Só ela fazia sentido.

Perdidamente apaixonado.

Depois do desmaio no banheiro, não me recuperei mais e ela envelhecia dia após dia cuidando de mim. O amor tem dessas coisas.

— Maria Eduarda! Não aguento te ver assim, meu amor! Você tá se acabando por minha causa! Eu te amo... — e ela me olhava com os olhos afundados em olheiras arroxeadas, por trás dos óculos. Já se viam fios de cabelos brancos, pés de galinha nos cantos dos seus olhos e rugas na testa. Eu estava disposto a morrer para cessar sua queda vertiginosa no poço sem fundo da velhice. Ela não me respondeu, apenas me olhou nos olhos de um jeito diferente, talvez tenha até dado um sorriso.

Quando acordei, depois de sei lá quanto tempo, sei lá quantos dias, ela estava sentada no chão, ao lado da cama, com a cabeça linda apoiada na mão esquerda, fazendo carinho no meu rosto cadavérico. Desconfiei de que precisava de cuidados médicos naquela hora porque não via mais as coisas como eram: Maria Eduarda estava jovem outra vez, com as bochechas rosadas, lábios vermelhos, sem rugas, cabelos muito pretos e brilhantes, linda, deliciosa, maravilhosa como a conheci. Tenho quase certeza de ouvi-la dizer pela primeira vez “Eu te amo”.

Apaguei novamente.

Até perdi a noção de quanto tempo estávamos juntos. Também não sei quanto tempo dormi; ou será que estava desmaiado? Num esforço de velho fraco que levanta para fazer xixi, todo cambaleante, arrastando os pés e me apoiando nas paredes, cheguei à cozinha. O que vi me fez ter certeza da precisão urgente de um médico!

Maria Eduarda espremia um pedaço de fígado e chupava o caldo vermelhão que escorria, depois rasgou a carne mole e nojenta com os dentes. Daí em diante não sei o que aconteceu, mas acordei assustado num local estranho.

— É seu Carlos, quase você foi pro beleléu, heim!

— Onde eu estou? O que aconteceu? Cadê a Maria Eduarda?

— Você tá no Hospital São Paulo e vai ficar um tempinho aqui com a gente, até descobrirmos aonde foi parar o seu sangue.

Conformei-me com a minha condição de doente e minha rotina era esperar pela chegada da hora da visita, só a Maria Eduarda não chegava.

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